Quando cumpria o
seu segundo mandato, Ramalho Eanes viu ser-lhe apresentada pelo Governo uma lei
especialmente congeminada contra si.
O texto impedia
que o vencimento do Chefe do Estado fosse «acumulado com quaisquer pensões de
reforma ou de sobrevivência» públicas que viesse a receber.
Sem hesitar, o
visado promulgou-o, impedindo-se de auferir a aposentação de militar para a
qual descontara durante toda a carreira.
O desconforto de
tamanha injustiça levou-o, mais tarde, a entregar o caso aos tribunais que, há
pouco, se pronunciaram a seu favor.
Como
consequência, foram-lhe disponibilizadas as importâncias não pagas durante
catorze anos, com retroactivos, num total de um milhão e trezentos mil euros.
Sem de novo
hesitar, o beneficiado decidiu, porém, prescindir do benefício, que o não era
pois tratava-se do cumprimento de direitos escamoteados - e não aceitou o
dinheiro. Num país dobrado à pedincha, ao suborno, à corrupção, ao embuste, à
traficância, à ganância, Ramalho Eanes ergueu- se e, altivo, desferiu uma
esplendorosa bofetada de luva branca no videirismo, no arranjismo que o
imergem, nos imergem por todos os lados.
RAMALHO EANES: UM HOMEM BOM! |
Antes dele só
Natália Correia havia tido comportamento afim, quando se negou a subscrever um
pedido de pensão por mérito intelectual que a secretaria da Cultura (sob a
responsabilidade de Pedro Santana Lopes) acordara, ante a difícil situação
económica da escritora, atribuir-lhe. «Não, não peço. Se o Estado português
entender que a mereço», justificar-se-ia, «agradeço-a e aceito-a.
Mas pedi-la,
não. Nunca!»
O silêncio caído
sobre o gesto de Eanes (deveria, pelo seu simbolismo, ter aberto telejornais e
primeiras páginas de periódicos) explica-se pela nossa recalcada má consciência
que não suporta, de tão hipócrita, o espelho de semelhantes comportamentos.
“A política tem
de ser feita respeitando uma moral, a moral da responsabilidade e, se possível,
a moral da convicção”, dirá. Torna-se indispensável “preservar alguns dos
valores de outrora, das utopias de outrora”.Quem o conhece não se surpreende
com a sua decisão, pois as questões da honra, da integridade, foram-lhe sempre
inamovíveis. Por elas, solitário e inteiro, se empenha, se joga, se acrescenta-
acrescentando os outros.
“Senti a
marginalização e tentei viver”, confidenciará, “fora dela. Reagi como tímido,
liderando”. O acto do antigo Presidente («cujo carácter e probidade sobrelevam
a calamidade moral que por aí se tornou comum», como escreveu numa das suas
notáveis crónicas Baptista-Bastos) ganha repercussões salvíficas da nossa
corrompida, pervertida ética.
Com a sua
atitude, Eanes (que recusara já o bastão de Marechal) preservou um nível de
dignidade decisivo para continuarmos a respeitar-nos, a acreditar-nos -
condição imprescindível ao futuro dos que persistem em ser decentes.
Fernando
Dacosta
Nota: Já escrevi algures no Expresso um comentário sobre Ramalho Eanes, mas
sinto-me na obrigação de dizer algo mais e que me foi contado por mais que uma
pessoa.
Disseram-me que
perante as dificuldades da Presidência teve de vender uma casa de férias na
Costa de Caparica e ainda que chegou a mandar virar dois fatos, razão pela qual
um empresário do Norte lhe ofereceu tecido para dois. Quando necessitava de um
conselho convidava as pessoas para depois do jantar, aos quais era servido um
chá por não haver verba para o jantar. O policia de guarda em vez de estar na
rua de plantão ao frio e chuva mandou colocá-lo no átrio e arranjou uma cadeira
para ele não estar de pé. Consta que também lhe ofereceram Ações da SLN-BPN,
mas recusou.